Desde hoje (1º/12), tirar a carteira de motorista no Brasil mudou. O Conselho Nacional de Trânsito (Contran) aprovou o fim da obrigatoriedade de fazer autoescola para conseguir a CNH. A promessa do governo é reduzir em até 80% o custo da habilitação e regularizar milhões de brasileiros que já dirigem sem carteira.

Mas será que é tão simples assim?

Vamos entender o que realmente muda, quem ganha, quem perde e se você deveria comemorar ou se preocupar.


🔄 O que muda na prática?

A autoescola deixa de ser obrigatória, mas as provas continuam. Você ainda vai precisar ser aprovado no exame teórico e no prático. A diferença é como você vai se preparar para isso.

Até ontem:
45 horas de aula teórica obrigatória + 20 horas de aula prática, tudo dentro de uma autoescola credenciada.

A partir de agora:
Você tem escolha. O governo vai oferecer um curso teórico gratuito e online, acessível pelo celular ou computador. Se preferir, pode continuar pagando por uma autoescola tradicional ou optar por um formato híbrido.

Na parte prática, a mudança é ainda mais radical. Em vez de 20 horas obrigatórias, agora são apenas 2 horas. Isso mesmo: duas.

Você pode fazer essas aulas com instrutores autônomos credenciados pelos Detrans ou continuar usando autoescolas. Se quiser mais aulas para se sentir seguro, pode contratar quantas quiser — mas por escolha, não por imposição.

Como fica o processo?

O processo também fica digital. Dá para começar tudo pela Carteira Digital de Trânsito ou pelo site da Senatran. Você só vai precisar ir presencialmente para:

→ Exame médico
→ Coleta de biometria
→ Prova teórica
→ Prova prática

A ideia é que o Estado pare de ditar como você estuda e passe a focar apenas em cobrar que você seja aprovado em exames rigorosos.


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💰 Vai ficar mais barato mesmo?

Aqui começa a primeira grande polêmica.

O que o governo diz

Sim, vai ficar muito mais barato. O Ministério dos Transportes calcula que o custo vai cair entre 75% e 80%. Hoje, tirar a CNH custa entre R$ 3.200 e R$ 5.000, dependendo do estado.

Com a nova regra, quem optar pelo curso teórico gratuito e fizer só as 2 horas práticas obrigatórias vai gastar basicamente:

→ Taxas dos Detrans
→ Exames médicos e psicológicos
→ Valor das poucas aulas práticas

A CNN chegou a estimar que a medida pode gerar uma economia de R$ 9 bilhões por ano para os brasileiros como um todo.

O que as autoescolas dizem

Calma lá. A ABRAUTO, associação que representa o setor, afirma que a promessa de “80% mais barato” é enganosa.

O argumento deles é simples: as taxas dos Detrans e os exames médicos já representam cerca de metade do custo atual da habilitação, e essas despesas continuam existindo. O que muda é só a parte das aulas.

Além disso, eles alertam que contratar instrutor particular pode até sair mais caro por hora do que a autoescola. Afinal, você vai precisar de:

→ Carro adaptado com duplo comando
→ Seguro
→ Combustível
→ Manutenção

As autoescolas diluem esses custos entre vários alunos. Um instrutor autônomo cobra por hora de trabalho e precisa bancar tudo isso sozinho.

E tem outro detalhe importante

2 horas de prática é pouco. Quem nunca dirigiu na vida vai precisar de mais tempo para se sentir minimamente seguro. Então, na prática, muita gente vai acabar contratando mais aulas. A economia real vai depender de quanto cada pessoa precisa praticar até estar pronta para a prova.

Resumindo:
Vai ficar mais barato para quem conseguir fazer só o mínimo e já tiver alguma noção de direção. Para quem começar do zero e precisar de um preparo mais robusto, a economia pode ser bem menor do que os 80% prometidos.


🎯 Qual é a ideia por trás disso?

O governo tem três objetivos principais com essa medida, e todos eles fazem sentido na teoria.

1. Regularizar quem já dirige sem carteira

Estima-se que cerca de 18 a 20 milhões de brasileiros estejam dirigindo ilegalmente hoje. Esses motoristas não passaram por nenhuma formação, não fizeram prova e não têm seguro. Eles representam um risco para todo mundo no trânsito.

A aposta do governo é que, se tirar a CNH ficar mais barato e acessível, essas pessoas vão se regularizar. Faz sentido: se o custo está entre R$ 3 mil e R$ 5 mil, muita gente simplesmente não tem esse dinheiro e continua dirigindo na ilegalidade. Com um processo mais barato, a barreira financeira cai.

2. Facilitar o acesso ao mercado de trabalho

A CNH virou pré-requisito para uma série de empregos: apps de transporte, entregas, motorista particular, vendedor externo, e por aí vai. Quem não tem a carteira fica excluído dessas oportunidades.

E, ironicamente, quem mais precisa da CNH para trabalhar é justamente quem menos tem dinheiro para tirar. É um ciclo perverso:

→ Sem carteira, não consegue emprego
→ Sem emprego, não consegue dinheiro para tirar a carteira

3. Dar liberdade de escolha

O discurso oficial é que o Estado não deveria ditar como você se prepara para um exame, mas apenas cobrar que você seja aprovado. É uma lógica liberal, de reduzir a intervenção do Estado e deixar o mercado regular.

As autoescolas passam a competir em preço e qualidade, os instrutores autônomos entram no jogo, e o cidadão escolhe o que faz mais sentido para ele.

O modelo internacional

O ministro dos Transportes, Renan Filho, tem repetido que o modelo se inspira em países como Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, onde o foco está na avaliação final, não na quantidade de aulas.

Nesses lugares, você pode aprender a dirigir com seu pai, seu tio, um amigo, e quando se sentir pronto, faz a prova. Se passar, está habilitado. Se não passar, continua treinando.


⚠️ E qual é o problema?

Aqui a coisa complica.

Porque tem muita gente preocupada com o impacto dessa mudança na segurança no trânsito. E não é pouca gente: Detrans, entidades de segurança viária, especialistas em trânsito e até parte das autoescolas (que, obviamente, têm interesse no jogo, mas também levantam pontos válidos).

Os números assustam

O Brasil já tem números assustadores de mortes no trânsito. São mais de 40 mil vidas perdidas por ano. É como se a população inteira de uma cidade do interior desaparecesse todos os anos.

E isso sem contar os feridos graves, as pessoas que ficam com sequelas permanentes, os traumas psicológicos, o impacto nas famílias. O trânsito brasileiro é uma das principais causas de morte violenta no país.

Nesse contexto, reduzir a carga de aulas práticas de 20 para 2 horas soa preocupante.

A formação importa

O Observatório Nacional de Segurança Viária, que acompanha esses dados de perto, alerta que a formação de condutores é um dos pilares centrais da segurança viária. Não dá para simplificar a ponto de virar apenas “treino para passar na prova”.

A formação se foca só em fazer em balizas e conversões. Ela também fala sobre:

→ Construir uma mentalidade de direção defensiva
→ Respeito às leis de trânsito
→ Percepção de risco
→ Como reagir em situações de emergência

A questão da desigualdade

E tem outro ponto importante: a desigualdade.

Quem tem dinheiro vai poder contratar 10, 15, 20 aulas práticas e chegar super preparado para a prova e para o trânsito real. Quem não tem vai fazer só as 2 horas obrigatórias, passar na prova (talvez) e ir para a rua menos preparado.

E quando esse motorista menos preparado causar um acidente, quem paga a conta?

→ O SUS, que vai atender mais vítimas de trânsito
→ A Previdência, que vai pagar mais aposentadorias por invalidez
→ As famílias que vão perder entes queridos
→ A sociedade como um todo

O desafio institucional

Existe também uma questão de capacidade institucional. Com a entrada dos instrutores autônomos, os Detrans vão precisar credenciar, fiscalizar e auditar muito mais gente. E, ao mesmo tempo, vão precisar tornar as provas teórica e prática muito mais rigorosas para compensar a queda na carga de formação.

Isso exige investimento, treinamento, estrutura. Será que os Detrans, muitos deles já sobrecarregados, vão dar conta?

O impacto no setor

As autoescolas, por sua vez, estão vendo o setor desmoronar antes mesmo da medida entrar totalmente em vigor. Pesquisas em Minas Gerais já mostram:

→ Queda no número de matrículas
→ Demissões
→ Fechamento de unidades

O setor fala em 15 mil centros de formação fechados e 170 mil empregos perdidos.

Sim, autoescolas têm interesse comercial nessa discussão. Mas elas também concentram, hoje, o conhecimento técnico e a estrutura física de educação para o trânsito que foi construída ao longo de décadas.


🌍 E como funciona em outros países?

O governo brasileiro tem usado como argumento o modelo de países como Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, onde não há obrigatoriedade de autoescola. Mas é importante entender os detalhes.

Estados Unidos

Nos Estados Unidos, cada estado tem suas próprias regras, mas em muitos deles você pode realmente aprender a dirigir com um familiar ou amigo, treinar bastante e fazer a prova quando estiver pronto. Não há carga horária mínima obrigatória. O foco está na avaliação final.

Mas isso funciona em um contexto cultural diferente:

→ A maioria das famílias tem carro
→ A cultura de direção começa cedo (muitos adolescentes aprendem a dirigir aos 16 anos)

Reino Unido

No Reino Unido, também não há obrigatoriedade de autoescola, mas as provas são extremamente rigorosas. A taxa de reprovação é alta, e não é incomum alguém fazer a prova três, quatro, cinco vezes até passar.

O custo das tentativas repetidas acaba compensando a ausência de aulas obrigatórias. Além disso:

→ O trânsito britânico é mais organizado
→ A fiscalização é intensa
→ A cultura de respeito às regras é muito mais consolidada do que no Brasil

A diferença de contexto

Então, importar o modelo não é tão simples quanto parece. Não basta copiar a estrutura. É preciso considerar cultura de trânsito, capacidade de fiscalização, rigor nas provas e contexto socioeconômico.


📊 O impacto no setor de autoescolas

Esse é um ponto delicado. As autoescolas estão obviamente em pânico, e parte da reação delas é movida por interesse econômico. Mas é importante separar o que é corporativismo do que são preocupações legítimas.

O perfil do setor

Hoje, mais de 70% dos Centros de Formação de Condutores (CFCs) em Minas Gerais, por exemplo, são microempresas com até nove funcionários. São negócios pequenos, muitas vezes familiares, que sobrevivem com margens apertadas.

Com a queda nas matrículas, muitas dessas empresas já estão demitindo ou fechando as portas.

As manifestações

Manifestações aconteceram em várias capitais, com autoescolas pedindo que o governo reveja a medida. O argumento deles é que isso não é apenas uma mudança de mercado, mas o desmonte de uma política pública.

Durante décadas, o Brasil investiu na ideia de que educação para o trânsito salva vidas. Agora, esse modelo está sendo abandonado sem que se saiba exatamente o que vai substituí-lo.

A outra perspectiva

Por outro lado, o governo argumenta que a autoescola não vai acabar, apenas deixa de ser obrigatoriedade. Quem quiser continuar pagando por um curso estruturado, com professor, material didático, simulados, pode fazer isso.

A diferença é que agora existe concorrência: instrutores autônomos, cursos online, estudo por conta própria.

Na visão do governo: isso é modernização e democratização.
Na visão do setor: isso é precarização.


🤔 Então, é bom ou ruim?

Depende de como você olha. E, mais importante, depende de como a medida vai ser implementada na prática.

Se você pensa no bolso e no acesso

É bom. Mais gente vai conseguir tirar a CNH, especialmente quem precisa dela para trabalhar e não tinha R$ 4 mil sobrando. Isso pode tirar milhões de pessoas da ilegalidade e abrir portas no mercado de trabalho. É uma medida de inclusão social, e isso tem valor.

Se você pensa na segurança no trânsito

É preocupante. Menos horas de aula podem significar motoristas menos preparados. E motoristas menos preparados causam mais acidentes. O custo disso não é só financeiro: são vidas perdidas, famílias destruídas, traumas que duram para sempre.

A pergunta que importa

O rigor das provas vai compensar a queda na formação?

Se o governo realmente endurecer os exames teórico e prático, se os Detrans tiverem estrutura para fiscalizar instrutores autônomos com qualidade, se houver investimento em educação para o trânsito mesmo fora das autoescolas, pode dar certo. Pode haver equilíbrio entre economia e segurança.

Mas se nada disso acontecer, se as provas continuarem sendo fáceis de passar, se a fiscalização for frouxa, se a medida for apenas um corte de custos sem compensação em qualidade, os especialistas preveem um aumento real nos acidentes.

E o custo disso vai parar:

→ No SUS, que vai atender mais vítimas de trânsito
→ Na Previdência, que vai pagar mais aposentadorias por invalidez
→ Nas famílias, que vão perder entes queridos


🔮 O que esperar daqui para frente?

A resolução foi aprovada hoje e passa a valer assim que for publicada no Diário Oficial da União. Mas o efeito real vai demorar para aparecer.

Vai levar tempo até que os Detrans estruturem o credenciamento de instrutores autônomos, até que o curso online do governo esteja rodando bem, até que as pessoas testem o novo modelo e a gente consiga medir o impacto real.

Pontos de atenção

Nos próximos meses, vale ficar de olho em alguns pontos:

1. Como vão ser as provas?
Se continuarem fáceis, é sinal de problema.

2. Como vai ser a fiscalização dos instrutores autônomos?
Se for frouxa, é preocupante.

3. Como vão reagir os índices de acidentes?
Se subirem, a medida precisa ser revista.

O componente político

E, claro, vale lembrar que estamos em um ano pré-eleitoral. Medidas populares que prometem “CNH mais barata” têm apelo político forte, especialmente entre a população de menor renda.

Não dá para ignorar que essa agenda também tem um componente eleitoral. O que não significa, necessariamente, que seja uma má ideia. Mas significa que é preciso avaliar com cuidado se a execução vai ser à altura da promessa.


📌 Resumindo

O fim da obrigatoriedade de autoescola promete deixar a CNH mais barata e acessível. Milhões de brasileiros que hoje dirigem ilegalmente podem se regularizar. Quem precisa da carteira para trabalhar vai ter uma barreira a menos. Isso é bom.

Mas a queda brutal na carga de aulas práticas, de 20 para 2 horas, preocupa especialistas em segurança viária. O Brasil já tem mais de 40 mil mortes por ano no trânsito, e motoristas menos preparados podem piorar esses números. Isso é preocupante.

A resposta para “é bom ou ruim?” depende de como o governo vai implementar a medida. Se as provas ficarem mais rigorosas, se a fiscalização for eficiente, se houver investimento real em educação para o trânsito mesmo fora das autoescolas, pode dar certo.

Caso contrário, a gente pode estar trocando economia imediata por um custo gigantesco em vidas perdidas no futuro.


🔗 Quer se aprofundar?

Agência Brasil – Entenda a proposta

CNN Brasil – Economia de R$ 9 bilhões por ano

Portal do Trânsito – Promessa de CNH 80% mais barata é enganosa?

G1 – Especialista mostra pontos positivos e negativos

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