Na semana passada, recebi de várias pessoas dois links que levavam a planilhas lotadas de reclamações trabalhistas a respeito de agências de publicidade, relações públicas e redações de veículos de jornalismo. Quase todos estão na capital paulista e são razoavelmente conhecidos tanto para quem é do meio quanto para quem é de fora.
As tais planilhas eram anônimas; não havia o nome dos autores das reclamações, claro. Tampouco havia alguém que se responsabilizasse pelos documentos. O espírito de quem compartilhava estes links era o de que se tratavam de denúncias trabalhistas, que mostravam o quanto os ambientes em tais locais são ruins. Alguns dos relatos falavam sobre assédios moral e sexual que funcionários das empresas teriam sofrido. Chefes, diretores e superiores foram nominalmente citados em outros casos, acusados de serem “loucos”, abusivos e de gritarem com seus funcionários.
Em princípio, podemos pensar que as duas planilhas são ótimas. Que elas foram uma maneira de os funcionários desabafarem e avisarem ao mundo o tipo de abuso que sofrem; e de mostrar ao mundo como as empresas de comunicação estão maltratando seus empregados. Os relatos, de fato, são muito parecidos com diversos casos de abuso que acontecem diariamente nestes locais. Eu mesmo já vivi alguns deles, presenciei outros e ouvi relatos de centenas de episódios parecidos.
A conclusão poderia ser, então, a de que as duas planilhas são um documento que mostra as condições de trabalho de publicitários, jornalistas e comunicadores em geral. Poderíamos até fazer um texto sobre isso, não? O título seria: “Comunicadores denunciam abusos trabalhistas em documento”. Mas existe um problema grave neste caso – que não pode ser ignorado.
Será que é verdade?
E para entender com clareza qual é o problema não precisamos ir muito longe. Basta usar um dos princípios básicos do jornalismo. Segundo Kovach e Rosenstiel (no livro “Elementos do Jornalismo”), para que uma informação possa ser publicada, ela tem de ser passível de verificação. Ou seja: algo só pode ser publicado se puder se checado, se pudermos ter certeza de que aquilo tem base na realidade.
Você pode me responde de bate-pronto e dizer: “Caso resolvido. Temos as planilhas, que foram preenchidas por centenas de pessoas! Eis o seu documento!”. Serei a obrigado a responder que as planilhas não são documentos e que não podem ser usadas como fonte de informação, pela razão simples de que não temos como saber se ela é verdadeira.
“Como assim?”, você perguntará. “Por que alguém inventaria algo assim?”. Minha resposta é bem simples: Quem me garante que alguém não inventou? Uma ou mais pessoas? “E por que alguém faria isso?” Não sei, mas, a menos que saibamos de onde vêm essas informações, não podemos descartar a hipótese de que a planilha seja falsa porque não temos como verificar sua veracidade. Se for falsa, a imagem de várias empresas e de pessoas reais está em jogo; elas podem estar sendo acusadas de fazer coisas que não fizeram de fato. Existe um princípio no direito que diz que todo mundo é inocente até que se prove o contrário. Não somos advogados, mas deveríamos comprar essa ideia também.
“Mas eu já trabalhei em vários desses lugares! Sei que as informações ali são verdadeiras! Isso não valida a planilha?” Não, vou repetir. O seu caso não torna aqueles dois documentos verdadeiros. De novo: eu não tenho como dizer que aquilo que está escrito é verdade. Que foram pessoas infelizes com o trabalho os responsáveis por aqueles textos. O seu caso pode ser verdade e eu confio em seu relato. Mas o seu relato é uma coisa, a planilha é outra. Em primeiro lugar porque é você quem está me contando, portanto, sei de onde vem. Em segundo lugar, a planilha tem fonte desconhecida e é impossível sabe de onde ela veio.
“Você está dizendo que as pessoas deveriam arriscar seus trabalhos e colocar seus nomes na planilha? Você é louco?” Não estou dizendo isso. Sei muito bem que denúncias de abuso (principalmente sexual) não são feitas justamente por conta desse medo: de ficar desempregado. Estou dizendo simplesmente que as planilhas não são confiáveis. Como alguém pode garantir que aquilo tudo não é uma grande ficção?
É preciso saber checar
Mas antes que você critique meu ceticismo, darei um exemplo de uma situação em que poderíamos confiar nesses relatos. É preciso que alguém se responsabilize pela informação. As denúncias poderiam estar numa reportagem. Para preservar as pessoas assediadas, o jornalista tem o dever e o direito de ocultar o nome e detalhes da vida de quem contou seu caso (isso é garantido por lei). Ou essas denúncias poderiam fazer parte do relatório de alguma ONG (organização não-governamental) que estuda abusos nas relações trabalhistas.
O importante aqui é perceber que tanto o repórter quanto a ONG seriam os responsáveis pela informação. Teríamos a garantia de que eles realmente falaram com funcionários das agências e redações. E que as denúncias vieram de pessoas reais. “Mas as pessoas podem ter mentido. O repórter pode ter mentido”. Verdade. Porém, pelo menos temos alguém que podemos responsabilizar por eventuais erros e mentiras. As planilhas anônimas que estão circulando pela internet não dão essa garantia a ninguém, por mais reais que pareçam.
Quando um jornalista vai publicar uma matéria, ele pesquisa exaustivamente e coloca apenas as informações que são verificáveis. Ou seja: ele consulta pessoas que realmente trabalham na agência ou redação em questão e ouve seus relatos. Na imprensa americana é comum existir uma pessoa que checa todos os fatos de uma reportagem, chamado “fact-checker” (checador de fatos). O que ele é faz é ter certeza de que tudo o que foi citado no texto pode ser verificado: dados, documentos e falas. Mesmo que esse profissional não exista no Brasil, todos os bons repórteres trabalham com esse princípio em mente.
Veja, por exemplo, o caso de Herman Rosenblat, um sobrevivente dos campos de concentração durante o período do nazismo. Segundo seu relato, durante o período em que passou preso, uma garotinha da mesma idade que ele tinha na época (11 anos), jogava alimentos por cima da cerca do campo, o que ajudou-o a sobreviver. Décadas depois, quando estava em Nova York, Rosenblat teria se apaixonado por uma moça que, ele descobriria depois, era menina que salvou sua vida. A história era tão bacana que programas de TV, jornais e escolas queriam ouvi-la. Rosenblat ficou famoso e foi convidado a escrever um livro sobre o caso. Imagine o sucesso que não faria. Algumas pessoas, porém, resolveram checar os fatos da história. E descobriram que era mentira. Especialistas em história que estudam os campos de concentração viram que era impossível que uma garotinha estivesse perto da prisão em que Rosenblat estava. Aquela era uma área isolada, e a única cerca que o campo possuía não estava perto de casas comuns. A editora não publicou o livro e o sobrevivente polonês admitiu que havia inventado a história a respeito da esposa. Tudo foi descoberto porque alguém se deu ao trabalho de checar a história.
E eu já sei o que você vai dizer agora: “Mas eu não tenho nada a ver com isso. Não fui eu quem fez essa planilha. Só estou repassando algo que recebi.” Discordo. Você tem responsabilidade sim. É chato ter que pensar nisso toda vez que recebemos algo no Facebook, Whatsapp, Twitter, e-mail? É chato sim. Envolve uma dose de esforço e reflexão: será que posso confiar nisso?
No entanto, mais chato ainda é espalharmos mentiras, documentos falsos, calúnias que podem destruir a vida de inocentes. Todos somos responsáveis pelo que disseminamos, compartilhamos e dizemos. Passou da hora de nos darmos conta disto.
Saiba mais:
Para fazer denúncias sobre violações no ambiente de trabalho, use o aplicativo MPT Pardal, do Ministério Público do Trabalho: http://goo.gl/sD0OtV